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Por que nos relacionamos com pessoas ruins?

Ilustração: Amanda Favali


A dor pode nos fazer acreditar em coisas que não existem. Talvez, por isso, tenho sentido muita vontade de sair por aí falando coisas horríveis sobre você, nada do que você não tenha feito, porém, nada que eu não tenha concordado que você fizesse (nós dois fizéssemos).

A verdade é que, antes de me sentir como eu me sinto agora, eu estive de acordo com tudo. Por isso é errado após ter aceitado em comum acordo o que você tinha para me oferecer eu sair por aí falando mal de você. E essa é a pior parte, sabia? Porque eu não caí de paraquedas nessa relação e não permaneci nela porque eu estive sendo iludida o tempo todo ou sendo enganada, pelo contrário, eu sempre soube que você era um puto e nunca fiquei puta com isso, até agora.

Porque agora eu estou tão machucada que eu sinto vontade de te ferir tanto quanto eu me sinto ferida. O problema é que você não fez nada de errado, nenhuma das nossas regras foram quebradas por você e, mesmo assim, nada parece certo para mim. É, de fato, a dor pode nos fazer acreditar em coisas que não existem!

O nosso combinado inicial já não combina em nada comigo, as regras continuam as mesmas e, aparentemente, elas continuam funcionando para você. Porém, eu não sou a mesma. O nosso acordo está em discordância com as pessoas que ambos nos tornamos ao decorrer desses anos, mesmo você insistindo em negar que ambos não somos mais as pessoas que éramos no início disso tudo.

As nossas regras, que outrora pareciam ideais, já não fazem mais nenhum sentido para mim e quebrá-las se tornou uma espécie de vício (sinto que eu deveria pedir ajuda). E você que odeia brigas e discussões passou a conviver comigo e a minha fúria. Eu me tornei a própria deusa da guerra, mas ainda não sei ao certo por quais motivos me sinto tão furiosa com você. E as cobranças, antes inexistentes, passaram a se tornar cada vez mais frequentes e junto as cobranças vieram as inúmeras acusações.

Sabe, nós mulheres negras ainda estamos aprendendo a falar abertamente sobre relacionamentos afetivos tóxicos. Só agora estamos aprendendo a identificar os chamados "caras embustes". Por isso, para nós, só agora se tornou possível cair fora da relação com vida antes que seja tarde demais. Porém, o que pouco discutimos entre nós é sobre a nossa saúde mental, — como a vivência cotidiana do racismo pode produzir danos e afetar a nossa capacidade de dar e receber amor —, e o quanto ela é fundamental para que tenhamos relações afetivas saudáveis.

Falamos sobre as opressões que vivenciamos cotidianamente e como o racismo afeta nossas vidas em diversos âmbitos. Contudo, não falamos sobre como a opressão e a exploração do período escravocrata distorceram e impediram a nossa capacidade de amar. Amar, para nós, não é uma tarefa fácil, por isso, inúmeras pessoas negras acreditam ser incapazes de dar e receber amor. Eu mesma, durante toda a minha adolescência, me considerei inamorável.

E, mesmo agora, compreendendo melhor por quais motivos me sentia assim, (o racismo produz marcas profundas), ainda tenho muita dificuldade em lidar com os interesses afetivos destinados a mim. Ah! E eu amo você. Tenho dificuldade de lidar com isso também, aliás, a descoberta desse amor foi assustadora, mas tenho aprendido a lidar com ele (o amor), comigo e com você.

Não está sendo fácil, ainda assim, de certa forma, eu sempre soube que o amor era difícil. O que ninguém me disse foi o quão difícil é estar num relacionamento afetivo com alguém que possui uma doença psicológica ou ser alguém com uma doença psicológica dentro de um relacionamento afetivo. O que ninguém me disse foi que não dá para seguir a “cartilha” do feminismo branco quando se está num relacionamento afetivo com um homem negro depressivo.

E ainda assim, é isso que somos instruídas a fazer cotidianamente. Essa “cartilha” me ensinou que se você não me liga é porque você não liga para mim, não está nem aí para o meu bem-estar e eu devo te abandonar.

Se você não me atende é porque está ocupado demais para se importar comigo, aliás, você não se importa comigo, por isso, devo fazer a fila andar.

Se não me atende e não me retorna é porque não dá mínima para a minha existência e eu mereço mais do um cara como você.

Se visualiza e não responde de imediato é porque não quer falar comigo, está me ignorando e eu devo devolver na mesma moeda, te ignorando o dobro.

E se não me exibe por aí é porque sente vergonha de estar comigo ou está escondendo algo de mim e o ideal, nessa situação, é que eu mande você ir se foder.

O que eu demorei para compreender é que você não me liga porque não liga para ninguém, pois, não é muito fã de ligações ou áudios, por isso, sempre termina optando pelo texto escrito.

Tem dias que você não me atende porque não tem ânimo para falar com ninguém e termina saindo de casa para ir trabalhar contrariado, desmotivado.

Às vezes você visualiza e não responde de imediato porque está ocupado, trabalhando ou tão irritado que prefere deixar para responder em outro momento ao invés de descontar suas frustrações em mim ou responder com rudez e iniciar uma briga.

E, por fim, você não me exibe por aí porque você não gosta de se expor, mas também não faz questão de me esconder, pelo contrário, está muito ocupado se escondendo de todo o mundo.

Recentemente eu aprendi que é preciso abraçarmos os nossos próprios demônios, caso contrário, eles irão nos atacar pelas costas. Acredito que cada pessoa possui ao menos um assunto (demônio) do qual vive fugindo, ao invés, de enfrentar (exorcizar). Por isso, aqui estou eu, enfrentando os meus demônios. Na verdade, já não tenho mais como não falar sobre eles, sobre mim, sobre você e sobre o nosso não-relacionamento.

Nos últimos meses eu fui tão má com você, tão impaciente, impulsiva e briguenta. Passamos a brigar por tudo e nada, quer dizer, eu brigava e você tentava entender o que havia feito de errado. E, na maioria das vezes, você não havia feito nada de errado, porém, a distância entre nós dois parecia aumentar a cada milésimo de segundo e você demonstrava não perceber que isso estava acontecendo, aliás, você parecia não perceber nada que estava acontecendo ao seu redor ou o quão frio e insensível estava sendo comigo.

Desde que te conheci você sempre foi tímido e afetivamente distante, apesar de ser, quase sempre, empático e atencioso. E eu não imaginei que a sua timidez pudesse ser um sinal de que algo não estava ok. Também não vi nada demais no fato de você ser tão reservado. Sinceramente, para mim você ser reservado era confortável, pois, enquanto você se mantinha na sua as minhas narrativas descreviam as nossas vivências, o que fazia de mim a dona da história e de você um mero personagem na minha escrevivência.

Só que em determinado momento as coisas realmente pioraram entre nós dois. Você começou a se comportar totalmente diferente do cara que eu conheci e com isso nossas brigas passaram a se tornar cada vez mais intensas e verbalmente desagradáveis, isso porque eu não conseguia compreender os motivos das suas mudanças de humor e você insistia em dizer que não haviam mudanças nenhuma.

A minha necessidade de brigar o tempo inteiro e a sua insistência em dizer que tudo estava bem me fez, em algumas situações, questionar minha saúde mental, mesmo assim, minhas dúvidas sobre a minha sanidade não inibia a minha vontade de brigar. Pelo contrário, brigar com você se tornou uma necessidade para mim, tal como é respirar. As brigas fizeram você se tornar ainda mais introspectivo e frio. E eu comecei a te enxergar e a te descrever como uma pessoa extremamente ruim.

Para a minha percepção você se tornou o macho escroto, o cara embuste, a pessoa ruim. A forma como eu passei a ver você era depreciativa, tudo em você era visto por mim como ruim e eu conseguia ver defeitos tanto nas coisas que você fazia quanto nas coisas que você não fazia. Para mim, os seus comentários se tornaram ainda mais ácidos, você se tornou ainda mais irredutível, ranzinza, impaciente e rude. Tudo que antes era admirável em você se tornou desagradável para mim.

Você também se tornou desagradável comigo sem nenhum motivo aparente e sempre que eu sinalizava isso você discordava e se afastava, chegando ao extremo de ficar várias semanas sem falar comigo. O seu distanciamento me fazia sentir como se você estivesse me punindo por eu ter dito “a verdade”. E essa sensação de injusta punição assegurava que brigássemos novamente, assim que voltássemos a nos falar. No entanto, o afastamento não era exclusividade sua, afinal, quantas vezes já te bloqueei nas redes sociais ou sumi por vários meses sem dar sinal de vida?

O que me magoa é que em nenhum momento passou pela minha cabeça que nada disso era sobre mim ou por minha causa. Em nenhum momento pensei em colocar nossa saúde mental como possível causa. Na verdade, eu me coloquei fisicamente como possível causa e deixei minhas inseguranças alimentarem a minha fúria, mesmo quando você tentava me dizer que não havia deixado de gostar de mim e muito menos havia deixado de se importar comigo.

O que me entristece é saber que esse texto poderia ser sobre você, na condição de “macho escroto” protagonizando a minha narrativa sobre um relacionamento abusivo que nunca existiu e, ainda assim, mesmo sendo inexistente eu sei que inúmeras pessoas acreditariam em mim, aliás, eu mesma acreditaria em mim se eu não nos conhecesse tão bem.

Finalmente, eu compreendo que você nunca mentiu sobre como se sentia sobre mim, assim como, também compreendo que você nunca me magoou intencionalmente. Você não é um abusador. Não é um macho escroto, não é um embuste e, definitivamente, não é uma pessoa ruim. Às vezes, o cara escroto, embuste e ruim não é exatamente esse cara que julgamos que ele seja. Porém, não existe uma história única e cada relacionamento possui um percurso próprio a ser percorrido.

Às vezes, de fato, nos relacionamos com pessoas ruins. Mas, se tratando de você e da nossa história ambos fomos ruins em determinados momentos e muito bons em inúmeros outros. Sei que eu preciso seguir seus passos e começar a fazer terapia, pois, saber que você é um cara com depressão e traços de distimia preenche algumas lacunas que antes me deixava bastante confusa e magoada. E apesar de saber disso não facilitar muito a nossa relação ao mesmo assegura que tenhamos uma relação, né?

Ter uma doença psicológica não anula todos os nossos problemas ou, sequer, justifica todas e quaisquer atitudes. Esse texto não é sobre justificativas ou anulações, pelo contrário, esse texto é sobre como você me tornou uma pessoa melhor, esse texto é sobre eu ter me perdido em você ao longo desses anos e, ainda assim, sempre me sentir em casa quando se trata de você. Esse texto é sobre termos um monte de sentimentos e não sabermos ao certo o que devemos fazer como eles. Esse texto é sobre eu ter escolhido ficar mesmo quando a decisão mais lógica seria eu ter ido embora.

Ah! Esse texto é sobre... Eu amo tanto você!


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